novembro 2019/ Mama Cadela, Belo Horizonte/ MG

GAL, em parceria com o Mama Cadela apresenta Magra Sombra, maior mostra individual realizada por erre erre, reúne uma seleção de 53  trabalhos produzidos pelo artista entre 2017 – 2019, a maioria inéditos, que diferenciam-se entre si enquanto linguagem, meio, materialidade, assunto e densidade.

Segundo erre erre, Magra Sombra é uma exposição que apresenta séries que apontam e se aproximam de questões heterogêneas, mas que trazem em si um eixo comum: a presença de um corpo vivo, de um corpo de passagem, aberto, em trânsito. Corpo este que é observado por parâmetros alargados de distância e tempo a partir de dilatações que opõe-se à linearidade, à imposição vertical de uma noção de tempo e vida achatada, terraplanar, capitalista. “O corpo a que me refiro aqui, é um corpo lento, que observa, que sente, que comunica, que erra. um corpo que vibra, que sonha. Um corpo que goza”.

As sete séries apresentadas nesta mostra, ‘Caos Rainha’, ‘Tudo Nasceu, Suave Coisa Nenhuma’, ‘Eu Nunca Tive Mãe’, ‘Vala’, ‘Incandescente’  e ‘Má Fé’ demonstram a rica criação do artista que trabalha em diversas mídias como pintura, colagem, desenho, motonotipia, impressão e vídeo. Não partem de uma delimitação conceitual uníssona, mas refletem o processo criativo do artista. erre erre reúne em seu trabalho uma rede de fragmentos que dialogam, conflitam, confluem.

Magra Sombra fala ainda sobre liberdades, sobre combates e sobre um tempo que não cria fronteiras; movidos sempre pelo fazer, pela ação, pelo gesto: a vivacidade da matéria, a invenção de vocabulários, a experimentação e destruição de linguagens. Não interessa ao artista o virtusiosimo, a pureza de cada linguagem, a história dos vencedores, o domínio das ferramentas. “Não me interessa o controle, mas o delírio”.

“Me instiga no título da exposição o fato de Magra Sombra ser uma combinação de palavras que não sugere prontamente uma imagem, mas uma relação entre elementos; traz ainda uma lentidão em si, que me agrada, pois frustra uma certa agilidade objetiva. Por fim, traz a atenção a algo opaco, invisibilizado, o avesso da luz: a sombra. Mas não é a sombra sob o peso obscuro, moralizado, é a sombra enquanto consequência de um corpo no aberto, de uma presença que atravessa um espaço e se banha de luz. Um corpo que recebe os raios do sol e projeta ali um desenho: um rastro imaterial, fugaz, volátil e diminuto” (erre erre).

Curadoria: Laura Barbi (GAL) e Rita Velloso. 

O QUE A ARTE NÃO PODE, MAIS, SER.

Que a mão do inverno, magra, não desfaça Em ti o teu verão sem que o destiles: – Torna doce algum frasco; dá que a graça Que tens se guarde, antes que se aniquile.

William Shakespeare, Soneto VI, 1609. (tradução Jorge Wanderley)

Qual é, ainda — a que pode ser, a relacão visceral entre política, trabalho e vida? Quanto desse modo de relacão, ainda — nos dias de hoje, cabe à arte mostrar? Resistem, no trabalho da arte, tanto um pensamento quanto uma prática utópicos que não cessam de almejar que as obras constituam um lugar de significados. Mas, há muito que a arte já não pode mais fazer representações exatas (mesmo que as obras existam o mais próximas possível da realidade); o trabalho da arte que mereça seu nome mostra a impossibilidade da transmissão vertical de sentidos ou de subjetividades. A materialidade da arte precisa da aspereza.

O que cabe a um artista então quando enfrenta a matéria que lhe cabe dar forma? Talvez somente substituir as continuidades e progressões próprias de um modelo de compreensão narrativo e empático, por uma experiência da forma quebrada, que exponha as tensões e as contradições inerentes à apresentacão das imagens por meio das quais formula suas hipóteses, coleciona seus dados,  monta e remonta seus desafios e soluções.

Quando associa, numa forma — a tela ou o papel — elementos não comparáveis, erre erre faz seu trabalho disputar o sentido das noções de beleza e prazer estético. É dessa incongruência aparente, quase palpável, que o trabalho do artista extrai sua força: não há alternativa possível a quem se posta diante do universo visual de erre erre que não seja o esforço da decifração e a experiência do tempo lento. Um olhar distraído não vê nada ali; para enxergar é preciso se entregar aos fragmentos, às manchas, aos ínfimos vestígios, ou ao acúmulo de camadas de tintas, borrões de luz e de sombras. Para experimentar é preciso amar a delicadeza que está ali, mas não se deixa expor facilmente.

Como no soneto shakesperiano, é preciso enfrentar o inverno — não evitá-lo; para continuar a viver é preciso encontrar um modo qualquer de fixar a memória dos dias claros e do calor. Talvez seja esse o trabalho que cabe à imagem, que cabe à arte. Fixar os retalhos, colar figuras, desdobrar a experiência do olhar do espectador, modular os sentimentos que provoca em quem a interroga, a ela, imagem. A rigor, a experiência que as obras de erre nos exige é a de um engajamento visceral. Ali colocar todo o corpo, se se quer ver. Mas não é um comprometimento egoísta, ao contrário: é uma obra que precisa de quem a vê para realizar-se, para ganhar corpo e ficar de pé.

erre erre abre de modo muito próprio uma rua de mão dupla, construída para reunir entre subjetividades tão diversas — a que desenha e a que contempla. E o faz por que sabe bem que a arte, a que cabe chamar pelo nome e defendê-la, é um modo de relação com o outro — o outro em nós.

Texto crítico: Rita Velloso

Rita Velloso é graduada em Arquitetura pela UFMG, mestre e doutora em Filosofia pela UFMG, com doutorado sanduíche na McGill University, em Montréal.  Professora Adjunta IV da Escola de Arquitetura da UFMG, sua pesquisa tem ênfase na relação entre arquitetura e filosofia, tanto estética como política, em especial naquela construída por Walter Benjamin, Guy Debord e Henri Lefevbre, no campo filosófico e por Manfredo Tafuri, no campo arquitetural.

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