2 de Abril a 14 de Maio de 2022 / Casa Gal, Belo Horizonte / MG
Gal apresenta Água Viva, mostra individual da artista Flávia Ventura. A exposição reúne um conjunto de obras produzidas entre 2021 – 2022 que refletem sobre o deslocamento de discursos e de protagonismos em relação ao corpo, gênero, violência e sexo.
NO DIA EM QUE CHOVI, O CÉU DESABOU BRILHANDO
Telas que se contorcem e ocupam chão e parede no espaço como marcas de corpos fantasmas. “No dia em que chovi, o céu desabou brilhando” de Flávia Ventura é o prenúncio da pós-tempestade, do alívio, do conhecimento dos limites do corpo.
Por associação livre e pela construção dos planejamentos, estes trabalhos me remeteram à escultura “O Êxtase da Santa Teresa”, considerada a escultura mais escandalosa de Bernini. Corpos que caem e se projetam. O êxtase em grego: “sair para fora de si”. Um estado psíquico, um gozo. Inútil procurar um sentido para estas definições nos dicionários.
O squirting que envolve os trabalhos de Flávia Ventura nos dá esta dimensão de coisas vivas e pulsando. A construção pictórica tem uma fatura fluida, um domínio de tradições da pintura envolvendo construção de afetos e figuras. Estes acontecimentos que também envolvem desenhos, instalações e performances. A pintura neste contexto assume outra materialidade. Acrílica e látex sobre tela, acrílica e pastel oleoso sobre tela demonstram variadas camadas cor de carne. Ou melhor, vários tons de pele que se misturam, se rejeitam e se completam.
Clarice Lispector descreve em Água Viva: Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e sombras que invento já e agora e que são o meio concreto de falar neste meu instante de vida. Meu estado é o de jardim com água correndo. Descrevendo-o tento misturar palavras para que o tempo se faça. O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha.
O estado de água correndo nas pinturas de Flávia Ventura nos traz a materialidade da onda, da chuva e do mar. E podemos parafrasear as palavras da frase de Clarice: O que te mostro deve ser visto rapidamente como quando se fala.
Os títulos de seus trabalhos também nos dizem desta amplitude do corpo. “A pequena morte”, expressão que, em francês (la petite mort), diz do período refratário após o orgasmo. Desaparecimento, escuridão, imersão: George Bataille – “o erotismo é a aprovação da vida até na morte”. Assim, em suas pinturas as camadas de tintas, superposições, instante-já, morrem e se ocultam para construir outras superfícies. Renovam sua existência e biografia.
Sebastião Miguel
Belo Horizonte, início do outono de 2022
Professor de pintura na Escola Guignard-UEMG. Doutor em arte contemporânea pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra.