Novembro a Dezembro de 2021 / Casa Gal, Belo Horizonte / MG
SER PLANTA (OU FATOS CÓSMICOS)
A existência de todo ser vivo é um ato cosmogônico.
Emanuele Coccia
Carolina Botura apresenta, em sua mostra individual Deserto fértil, um conjunto de obras que nos fazem olhar com desconfiança para questões limítrofes como natural e artificial; vegetal, mineral e animal, e sobretudo vida e morte. A mostra, que inaugura a Casa Gal, traz um portal de sementes, plantios, a obra digital “Balsa”, fotografias, pinturas acrílicas e à óleo, como as da série “Que o verde cresça”, da qual faz parte o tríptico “Na boca da mata ah”, e também esculturas que se equilibram tocando vagamente o chão e cuja matéria prima é a passagem do tempo não linear, cíclico. Além disso, serão apresentados objetos, como as composições em gavetas, emblematicamente intituladas “Genealogia do belo”.
Independentemente dos partidos artísticos aos quais a artista se filia e dos suportes que se apresentam para que com eles seus trabalhos ganhem forma, vale destacar a singularidade do modo de trabalhar de Carolina Botura, já que seu processo criativo, se assim podemos chama-lo, é, digamos, da ordem de uma coletividade ambiental.
Sabemos que um corpo vegetal não pode, pelo menos em sua estrutura anatômica, ser imitado por um corpo animal, já que, enquanto nas plantas “tudo pode derivar de tudo” (o broto é composto de rudimentos das folhas, que podem tornar-se cálices, e cujo princípio, por sua vez, é o mesmo das flores), no animal, ao contrário, não é possível reconduzir ou metamorfosear entre si partes tão díspares quanto nossos órgãos (1). Mas Botura parece ignorar esse fato, preferindo acreditar que “imaginar é se tornar o que se imagina”(2). Mais que tentar fazer equivaler suas estruturas corpóreas às do vegetal, ser planta é, para a artista, fazer o que por excelência a planta faz, aquilo que constitui sua ontologia, que é ser absolutamente permeável em relação ao que a rodeia. “Não se pode separar a planta do mundo que a acolhe.”(3) As plantas são ao mesmo tempo o meio ambiente e a condição para sua existência, já que elas que o tornam habitável, que o tornam ambiente. E é por um processo análogo a esse que Carolina Botura transforma em arte suas experiências: vivendo a vida de uma atmosfera, fazendo as vezes do ar e de todos os seres que ali estão, certa de que eles não só são a ela absolutamente familiares, como sua composição e sua vida passa por eles na mesma medida que deles depende.
Pensar no processo criativo da artista requer uma superação da noção de gesto criador, pois nesta está contida a ideia de via de um só sentido, de um sujeito que dá vida a um objeto até então inanimado. Ao contrário, os modos de operar de Botura são de outra ordem, a qual poderíamos arriscar nomear como: co-escuta, co-tradução, observação sensível ou retro alimentação, contanto que nunca percamos de vista que se tratam de processos de, no mínimo, dois sentidos: do que vemos e dos que nos olham, ou, melhor ainda, dos que sentem e dos são sentidos. Por isso os trabalhos da artista são experiências em si (com autonomia e para além da experiência que ela tem enquanto, em conjunto com eles, os realiza). A força – pulsão de vida – que incontornavelmente sentimos em suas obras está lá e nos interpela, pois elas, antes de serem pintura, objeto, escultura ou o que for, são presenças-inquietas-vivas. Estar em companhia de um trabalho seu é conversar com ele, ouvi-lo falando, cochichando e também ouvir seu silêncio.
Um dos trabalhos apresentados na exposição é um portal de sementes em que cada uma delas está ali como um pós-paradoxo ou como uma devida apropriação do que chamamos de paradoxal (e que a arte contemporânea de um modo geral poderia assumir mais declaradamente, a meu ver).
Antes da modernidade consagrar a razão como algo destacado da natureza, as plantas eram consideradas seu emblema por serem um espírito que se exerce na modelagem de si mesmo (4).
Atrelar o vegetal à razão tinha como principal motivo o fato de as sementes conterem o programa de vida do vegetal, sendo um modelo formal sem o menor erro. Tendo em mente que, como já dito, as plantas são as responsáveis pelo fato de a Terra ser um lugar habitável, a semente, seu germe, seria portanto um fato cósmico e também, além disso, o espaço em que o ato da razão coabita [paradoxalmente, se quisermos] com o devir da matéria (5). Nesse sentido, a razão deixa de ser um gesto inerente apenas à vida da planta que da semente virá, para ser algo muito maior, a saber, a existência da atmosfera, ou seja, da possibilidade de vida. A semente equivale, desse modo, à ontologia da vida. Assim, as sementes carregariam o paradoxo do original: não só matériaracional- em-devir, mas também na forma de uma extemporaneidade. Origem próxima do arcaico, por ser uma espécie de arquétipo, mas jamais fixada em um ponto inicial cronológico, já que segue operando no devir histórico, “como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto.”(6) Quanto à Carolina Botura, lhe resta se permeabilizar nas e com as plantas e suas sementes originais-processuais, na figura de suas obras: resultados, mas que seguem em curso de processo, pois seu crescimento, ao contrário de se encerrar ao serem “concluídas” na transformação da semente em planta, continua criando brotos que se tornam folhas, galhos, ramos, flores e ramificando quando dado a ver ao outro, no espaço expositivo ou onde for.
Por fim, a obra da artista, ao desconfiar de limites sobre os quais o pensamento ocidental se acostumou a estruturar, a saber, por pares opositores, torna, portanto, inadequada e ultrapassada a noção de paradoxo enquanto algo que “contraria os princípios básicos e a opinião consabida”.
Nos modos como Botura prepara o terreno para que sua arte se fertilize não há contradições pois estas estão devidamente apropriadas, digeridas, superadas e transformadas conforme vemos, por exemplo, no conteúdo das Gavetas apresentadas por Botura, “Genealogias do belo”. A perda de viço das folhas e de outras matérias cuja desidratação ocre faz, segundo a própria artista, as vezes das da vitalidade que suporíamos estar nas cores vívidas das tintas industriais (acrílica e à óleo) usadas em suas pinturas. Nos maços de hibisco, de ervas e de outras ramagens que a artista cultiva por tempos que, ao passar, faz envelhecer e nascer simultaneamente, no cultivo de matérias em processo de decomposição que compõe vidas, vemos uma dança na qual quem protagoniza a alvorada é o pó.
(1). Emanuele Coccia, Metamorfoses (2020), p. 93-94.
(2). Ibidem, A vida das plantas (2018), p. 19.
(3). Ibidem, p. 13.
(4). Ecoando esta mesma noção, o artista Giuseppe Penone dirá: A árvore é a escultura perfeita, pios registra em si, em seu próprio corpo, todos os momentos de sua existência, sua necessidade de vida.
(5). Emanuele Coccia, A vida das plantas (2018).
(6). Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo (2009), p. 69.
Texto: Marina Câmara | Curadoria: Laura Barbi