24 de Novembro de 2023 a 27 de Janeiro de 2024 / Casa Gal, Belo Horizonte / MG
GAL apresenta Dias de Sorte, exposição individual da artista Dolores Orange.
TUDO PODERIA DESABAR, MAS ESTÁ LÁ, RESPIRANDO
A cor, diz Dolores Orange, é resistência e força. Para compreender o sentido que a artista dá a esses termos, é preciso olhar sua produção tendo em mente a força e a resistência, a inventividade e a complexidade das obras de Volpi e Ione Saldanha.
A arte abstrata, em meados do século XX, sob o signo do expressionismo abstrato, ganhou uma sisudez, consequência de programas nacionalistas que exigiam dela a representação do poder de países hegemônicos e a configuração de uma linguagem geral que deveria, por um lado, não se posicionar em termos políticos evidentes, por outro, garantir-se como a única alternativa possível para o exercício democrático.
No entanto, essa apropriação da abstração na arte como ferramenta de imposição cultural não pode reduzir a própria arte. Artistas como Helen Frankenthaler, Hedda Sterne, Joan Mitchel, Lee Krasner, Grace Hartingan, entre outras, não interessaram ao Estado como manifestações nacionais do poder político e bélico porque eram mulheres. Seus colegas – de Jackson Pollock a Willem de Kooning –, não tiveram a mesma sorte. Tampouco artistas racializados foram incluídos na demarcação de territórios do self-made man, a julgar pelo apagamento de nomes como Norman Lewis e Beauford Delaney. Como pergunta Orange, quem estava autorizado a fazer arte abstrata?
Mas, nem sempre foi assim. A história da arte abstrata europeia em sua primeira configuração, no âmbito das vanguardas no início do século XX, guardava em si espaço para misticismos, magia e esferas subjetivas da humanidade. Nesse lugar encontramos nomes há pouco tempo valorizados e redescobertos, como Hilma af Klint e Sonia Delaunay, entre as mulheres que ousaram endereçar o assunto. Porém, o elemento místico, transcendental mesmo, estava nas ideias de todos, Mondrian, Malevitch, Kandinsky.
Não é gratuita a menção aos aspectos de maravilhamento espiritual mencionados em relação à arte abstrata. De fato, há na interlocução entre formas e cores, que não figurão referentes, algo de mágico. A própria vontade de se identificar referências do mundo nas formas abstrata indica como esse tipo de arte nos permite uma fluidez de imaginação e um mergulho nas nossas fantasias e possibilidades de invenção.
Se naquilo que configura a arte moderna, as abstrações tiveram enorme espaço e difusão na contemporaneidade, elas ainda habitam o nosso imaginário, fluindo livremente entre a arte contemporânea e as artes, um dia, entendidas como populares. A arte abstrata permite essa porosidade entre sistemas artísticos diversos porque sua linguagem circula sem grandes impedimentos evocando, sobretudo, nosso lado sensível.
Orange evoca encontros entre esses mundos, utilizando as cores populares sem medo, como um dia Tarsila também o fez e o que se repetiu em Volpi e Saldanha – e tantos outros artistas populares anônimos que não obtiveram o reconhecimento de sua contribuição para a visualidade brasileira. O lugar incômodo de Volpi e Saldanha é pautada pela geometria solta, no caso dele, evidenciando a mão que pinta; no dela, a tinta que escorre – em ambos a ousadia das cores “caipiras” que transformaram a visão colonizada do que eram cores elegantes por parte da musa do modernismo.
São esses rosas e azuis pastéis que encontram vermelhos vivos, a cor que define espaços; formas geometrizadas livres e delicadas, que enfatizam o gesto humano. Por vezes sugerem palcos, castelos, monstros, pedras, paisagens, bandeiras, brincos, sorvetes. Tudo possui a mesma importância, sem hierarquias. Trabalhando em pastel, tempera, óleo e guache, às vezes com empasto, às vezes, com finas camadas de tinta, Orange ocupa o espaço bidimensional como se brincasse de equilibrar objetos. Tudo poderia desabar, mas está lá, respirando.
No trabalho de Orange que vemos nesta exposição, formas e cores se encontram e essa festa parece como o carnaval – onde as contradições subsistem na manifestação cultural mais popular de nossa brasileirice, plena de simbolismos, sincretismos e devoções. A sutileza dos trabalhos transmite uma sensação de presença suave, ao mesmo que estão firmes na sua convicção formal – sem pentimento. Neles, há uma potência mística que nos seduz, porém é a harmonia dos elementos que nos acolhe.
Texto crítico: Ana Avelar
Curadoria: Laura Barbi