24 de Novembro de 2023 a 27 de Janeiro de 2024 / Casa Gal, Belo Horizonte / MG
GAL apresenta Endereços, exposição individual da artista Marcela Novaes.
INCIDENTES DA FOSSILIZAÇÃO
Acessou o Google Earth sem saber o que procurar. Foi aumentando o recurso do zoom (mais, mais, mais) até que localizou um lugarejo chamado Pedra da Solidão. O terreno parecia muito seco. Quase nada de ocupação humana. Um vilarejo de nada, pulverizado no nada. Acrescentou à lista de compras mais alguns tubos de filtro solar e um chapéu de abas largas.
Solidão, em Afagos de José Rufino, Cosac Naify, 2015.
Estruturas arquitetônicas, a paisagem circundante e o pouco de atmosfera visível aparada pelo recorte da composição sintetizam e elaboram imagens que passam pela concentração desses poucos elementos em uma pequena área de visualização, enquanto que a extensão da paisagem é deixada de fora do campo visual. Ainda que o extracampo esteja sempre impedido de compor a imagem, sua presença intrusa parece invadir o intracampo dos diversos Endereços de Marcela Novaes, exprimindo uma espécie de presença psíquica a partir de resquícios justamente daquilo que está decepado da imagem.
Em suas pinturas parece haver um motor em constante produção de encenações. Seus endereços elaborados nos convocam pensar a duplicidade na qual reside a palavra cena, quando ao mesmo tempo que é uma totalidade envolvente, uma ambientação fenomenológica montada a partir de fragmentos externos à situação em um certo espaço e em que um certo tempo incide encarnado, também relembra seu caráter parcial e fragmentário: o pedaço, a porção, a cisão ou o corte.
Por que em tais cenas parece vigorar uma espécie de toque de recolher? Os elementos arquitetônicos são personagens centrais nas imagens. Chegamos em endereços onde lindas casas estão dispostas, com suas portas e janelas, muros, paredes, telhados e chaminés. Contudo, as janelas estão fechadas, os muros e cercas parecem antiquados para um lugar sem invasores, as chaminés, inúteis, as roupas no varal para secar parecem estáticas, duramente passadas a ferro pela cena paralisada, os animais quando não são peculiares estruturas cimentadas, empalhamentos arquitetônicos, presentificam um certo desarranjo da calmaria ditatorial.
Tudo está fechado em si mesmo, encerrados em suas próprias presenças – únicos elementos que não conseguem partir em fuga da imagem, migrar ou refugiar-se para fora. Junto as arquiteturas, a paisagem se avessa recuada, o céu é monótono, a luz é baixa o suficiente para iluminar muito bem as casas, mas que deixa a vegetação desnaturalizada, artificial, vulnerável a incêndios. A disposição em encenação dessas imagens não nos oferece uma aclimatização de caráter distópico, longe disso. Parece estar aquém desse regime escatológico, recuado ou acuado talvez por entre uma manga de nossa própria realidade atual banhada sob o filtro do onírico.
De um lado o humano está exterminado da imagem e sua ausência radical nos inquieta e nos lança a uma aproximação do olhar perante suas cenas em busca do motivo da evasão. Por outro lado, há um excesso do humano porque colateralmente vemos seus restos em gestos, feitos e técnicas, em suas construções abandonadas ao nosso olhar, fazendo-nos, emocionalmente, querer recuar.
Esses subentendidos indicam que o perigo, – o mal e a aniquilação na experiência – não está talvez dentro das casas, nem por detrás das grades, mas no aberto da paisagem e, ulteriormente, fora do território da imagem pictórica: está aqui fora. Ou talvez, em algumas pinturas mesmo, vemos o momento anterior a isso, quando a partir de um imenso perigo guardado misteriosamente no interior dessas domesticidades, o humano é expulso em fuga para bem longe dali.
Em sua série Endereços, suas cenas parecem nos oferecer o exercício de indagações reflexivas. Onde está o humano? Por que a sensação de perigo ou de mistério é acionada justamente na constatação da falta ou ausência desse humano? Por que sem esse elemento nos sentimos perdidos e incapazes de ler, tecer ou imaginar novas narrativas? Por que a paisagem, mesmo pertencente ao Planeta Terra, quando é apresentada fora de códigos enquadrados pelo humano passa a ser lida como alheia, estrangeira e intrusa – como se parecesse com algo de outro mundo –, quando em verdade, é o nosso próprio mundo físico, só que autônomo do jugo das distinções entre humano ou natural, original e artificial, livre da recepção de que é parte de nosso planeta-moradia e que, portanto, estaria inescapavelmente destinado para nós, humanos?
E retornamos ao doméstico – esse contrato social de entendimentos arbitrários sobre o que é do espaço do humano – e Marcela Novaes os depura, desnaturaliza, expõe a categoria do doméstico e o que realmente subjaz escondido – domus: a casa, o domo, a abóboda, dominus: o senhor Deus, o senhor da casa, dom e dona; domar, dominar, domesticar – liberando a própria artificialidade da ambiência de acolhimento humano, já que tudo é encenado quando tratamos do que é doméstico.
À paisagem, a artista aposta em sua presença inarredável, mas recuada. Toda desnaturalizada e artificial, se torna elemento mínimo, em que parece rebaixar a quantidade de informação, depurando a ideia de abundância e diversidade natural a uma aposta como palco de transição – aí sim distópico – rumo a um fundo que paradoxalmente raso é sufocado por uma espécie de atmosfera homogênea e cega.
A superfície dos elementos é instaurada em uma situação pendular na qual organicidade e geometria vice-versa se revezam. E isso por vezes atinge colateralmente a regência da perspectiva, quando edifícios multifacetados parecem simplesmente flutuar sobre a grama, o telhado plano parece convexo ou rochedos simplesmente estão assentados sobre o fundo do quadro como se resultantes de um ato de colagem.
A casa e o lar (1) são destituídos das acepções de segurança, de conforto, de segurança ou de hospitalidade: arma-se um clima de tensão capaz de, a qualquer momento, desmontar qualquer cena pacata, afastando do caráter pitoresco, pois a artista diretamente não se esquece do estatuto de origem dessas imagens, recolhidas a partir de peregrinações virtuais pelos mapas do Google. Com isso deixa transparecer – num ato tão humano quanto é o de pintar e produzir imagens bidimensionais – a própria dessensibilização a-humana que a mídia de captação de vistas para mapas virtuais promove sobre o próprio espaço simbólico onde se constrói a arquitetura, a cidade, a paisagem e onde os conceitos mentais ligados ao espaço e lugar são edificados.
Ao transpor para os Endereços, a artista submete essas imagens ao jugo de uma potente lupa, onde seu centro é um protagonista mais ou menos nítido e suas adjacências, ainda mais denunciadoras da distorção que o próprio instrumento tenta, ao mesmo tempo, escondê-la e fazer disso o seu produto mais eficaz: dá-se à vista justamente esse fascínio pelas imagens, paradoxal por repensá-las humanamente a-humanas, ardidas e ao mesmo tempo desprovidas de desejo, atrativas, mas recuadamente frias.
Marcela Novaes convida a todos para seus endereços, em que faço lembrá-los etimologicamente de sua relação com direção e de sua proveniência a partir de dīrectus, direito, alinhado, em pé, mas aqui sem direção, de ambiência distorcida, inacessíveis a visitação física porque suas pinturas operam uma espécie de fossilização desses pontos de chegada. À vista estão essas pequenas propriedades que instigam, agrimensuradas pelo olho fascinado que encontra seu endereço de desejo, o corte tal qual se delimita com uma cerca uma paisagem.
E, então, em um passo final de pulverização da presença do que é humano, Marcela Novaes apresenta em obras têxteis – uma das linguagens que mais deixa presente no resultado final paradoxalmente seu caráter antropomórfico – seus endereços. São como verdadeiras parcelas abstraídas de paisagem, frações espaciais cujos elementos então remissíveis ao que é doméstico estão interpretadas em uma espécie de olhar de sobrevoo.
De sua mente onírica que voa, engenhosa artista de Google Earth que é, capaz de produzir sínteses a partir de uma peculiar junção de minimalismo nórdico, surrealismo francês, pintura metafísica italiana e land art estadunidense um gesto peculiar de localização. Vemos a propriedade endereçada ao público desde cima, mas que, ao mesmo tempo, é pouco provável sabermos nem suas exatas coordenadas, nem discernir com assertividade seus elementos a tão alta altitude, quando quem olha é sua própria mente e quem nos hospeda, a desorientação.
Texto crítico: Fercho Marquéz-Elul
Curadoria: Laura Barbi
(1) E não se pode furtar de retomar esta palavra de sentido tão confortável, mas que na religião da sociedade romana antiga, lares designavam, por sua vez, os espíritos que protegiam a familia romana. Nas imagens da artista, parecem inexistir tais espíritos protetores relacionados ao doméstico: incidentes que são, portanto, seus endereços, em que sem humanos não há deuses protetores e, portanto, suas edificações, mesmo tão belas e cuidadas, perdem a função doméstica e de lar. As acepções para as palavras doméstico e lar estão vazias, ocas, sem intermediação reflexiva humana e que a nível do simbólico, seu interior está escavado; da mesma forma, é possível perceber esse mesmo processo de desapropriação dos sentidos dos elementos, por meio de delicados indícios pictóricos e estruturais nas paisagens, no modo como a rarefação da atmosfera e da ambiência climática confere a expressividade de mistério e de desastre prestes a acontecer.