MOSTRA INDIVIDUAL DE GIULIA PUNTEL: QUARKS
GAL tem o prazer de apresentar a primeira exposição individual, na galeria, da artista Giulia Puntel. A mostra reúne uma série de obras inéditas, onde a artista parte do conceito da física quântica para construir um paralelo entre o invisível que estrutura o mundo e o modo como suas próprias obras se formam, em constante tensão entre o material, o som e o sentido.
QUARKS
Cosmos. Lixo mastigado por uma estrela-anã. Cama, travesseiro e edredom para insetos. Caixa de ferramentas. Casa de máquinas orgânicas. Imagens de satélite pixeladas. Mesas: de operação, de vivissecção, de controle, de jogos. Instrumentos musicais? Bandeira de um país mirim. Exoesqueletos de plástico e resina. Plaquinhas de alumínio, ligas de cobre e manganês. Ondas de rádio, provavelmente. Disjuntores, fusíveis, circuitos, alavancas: tudo estragado. Um sofisticado sistema tectônico (atenção: tectônico, não hidráulico). Pó de meteorito. Quadra poliesportiva para moléculas bêbadas. Gatos de Schrödinger! Chapas de raio-x de corpos sem órgãos. Fliperama, cartuchos, joysticks: olhando bem, tudo é joystick.
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Quarks, de Giulia Puntel, parece ser tudo isso – e, ao mesmo tempo, nada disso. De imediato, o que salta aos olhos nesses trabalhos é seu grande poder de resistir à classificação apressada, à estabilidade conceitual, à fixidez de sentido poético. Eles parecem se instalar num ponto altamente instável, mas igualmente produtivo, no qual desmoronaram as linhas de demarcação convencionais entre as linguagens artísticas, entre o estado de artefato e a situação de processo, entre a arte e o jogo. Essas fronteiras são renegociadas e recombinadas a cada trabalho, num exercício a um só tempo lúdico e experimental, aventuroso e delicado. O resultado são objetos singularíssimos, virtualmente indefiníveis, dotados de um notável poder de evocação imagética, cujo processo de feitura parece ainda tão vivo, tão aceso, que temos a impressão de que seria quase possível fazer o caminho de volta, retraçá-lo retrospectivamente a partir do objeto finalizado. E embora sejam muito bem-acabados e conduzidos por um pensamento composicional bastante sofisticado (entre o pictórico e o escultórico, o estático e o cinético, o objeto e a instalação), temos a sensação de que cada um desses trabalhos é apenas uma cristalização possível dentre tantas outras que cada um deles poderia ter se tornado. Neles, o potencial parece estar tão presente quanto o atual. Aliás, é provavelmente aí que reside parte de sua grande ludicidade: sem cerimônia, eles parecem nos convidar para entrar no jogo. Jogo jogado, jogo ainda aberto. Eles são o que são, mas também o que poderiam ter sido – e, quem sabe, o que ainda poderão se tornar.
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Um convite para entrar no jogo – um jogo cujas regras, no entanto, não conhecemos de antemão, e que provavelmente são tão indefinidas quanto o próprio jogo. E, apesar de sustentar tanta indefinição, nada em Quarks incita receio, frieza ou distanciamento no observador. Ao contrário, é marcante como esses objetos provocam uma simpatia quase irresistível em nós. Seus materiais simples, sua voluntária precariedade, seu tamanho reduzido, sua elevada carga de humor e ludicidade – tudo isso, em suma, parece convergir para que Quarks se revista de grande potencial expressivo, de uma notável potência afetiva. Numa palavra: esses objetos são eloquentes, eles falam com a gente. Para mim, são fonte de intensa ternura. Ao que parece, a matéria aqui não apenas se acende – ela também se aquece.
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Mas talvez seu grande potencial afetivo não seja mais do que a expressão inevitável do intenso amor pelos materiais de que esses trabalhos prestam testemunho. Mais ainda: amor pela matéria, já que virtualmente qualquer resto, resíduo ou refugo de matéria parece poder se transformar em material artístico para Quarks. De certa maneira, trata-se aí de uma forma de amor análoga ao amor do colecionador pelos itens, não raro inúteis e idiossincráticos, que ele preserva e salva em seu acervo. (O colecionador estabelece “uma relação com as coisas que não põe em destaque seu valor funcional ou utilitário, a sua serventia, mas que as estuda e as ama como o palco, o cenário de seu destino” – Walter Benjamin).
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Embora tão singulares, os trabalhos de Quarks não estão sozinhos. Não são poucos os pontos de contato que podemos traçar entre eles e certas experiências decisivas da arte contemporânea. A seu modo, esses objetos parecem orbitar a lógica daquilo que Leo Steinberg chamou de plano flatbed, localizável em um espectro considerável de produções contemporâneas: uma superfície de criação horizontal, aberta à múltipla contaminação do mundo, que corresponde aos processos operacionais do corpo humano e se destina mais à criação de imagens explicitamente artificiais e ruídos ópticos sobrepostos do que à feitura de imagens supostamente naturais, autossuficientes, íntegras. É este o território de Quarks: mais ação do que contemplação, mais ruído do que pureza, mais artifício do que natureza.
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Quarks também parece querer reatar o fio que remonta aos trabalhos de artistas conhecidos como pós-minimalistas, como Eva Hesse, Richard Tuttle e Phyllida Barlow. Em geral, a poética desses artistas conserva a atenção à materialidade e à relacionalidade entre obra, espaço e observador dos seus antecessores minimalistas. No entanto, eles promovem uma forte guinada em direção à subjetividade e organicidade estéticas, assim como à fragilidade e precariedade dos materiais, o que contrasta frontalmente com o rigorismo geométrico, impessoal, objetivista e industrialista dos minimalistas. (Guardadas as tantas diferenças, trata-se de uma inflexão análoga àquela promovida, entre nós, pelos artistas neoconcretos em relação à arte concreta de um Grupo Ruptura, por exemplo). Penso que Quarks promove uma interessante apropriação e torsão bem-humorada da estética pós-minimalista no nosso contexto artístico-cultural, no qual a fragilidade e a precariedade material inevitavelmente adquirem contornos crítico-políticos.
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Originalmente, quark é uma palavra da língua inglesa arcaica que designa o grasnar dos corvos e de pássaros aparentados. Há também uma versão alemã do vocábulo, que designa um tipo de queijo coalhado ou, mais coloquialmente, algo como “absurdo ordinário” ou “trivial”. Em seu Finnegans Wake, romance monumental finalizado em 1939, James Joyce recupera o termo em toda a sua polivalência numa série de versos com delicioso sabor nonsense, num coro de pássaros que zombam do Rei Marcos da Cornualha, marido de Isolda, que, segundo o mito, se apaixona por Tristão. Eis os três primeiros versos: “Three quarks for Muster Mark! / Sure he hasn’t got much of a bark / And sure any he has it’s all beside the mark”. Em tradução livre: “Três quarks para o Seu Marcos! / Olha, seu latido é tão parco, / e quando late é um grande fiasco!” Em 1964, o físico Murray Gell-Mann emprega o termo em inspiração joyceana para batizar o que seria um dos constituintes fundamentais da matéria. Segundo sua hipótese, os quarks se combinam (com frequência em grupos de três) para formar um gênero de partículas compostas ao qual pertencem os prótons e os nêutrons, os principais componentes do núcleo atômico, até então tido como indivisível. Eis aí a longa e indomável história de uma palavra, da qual esses objetos formam agora o mais recente desdobramento.
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Os Quarks de Giulia Puntel talvez sejam mesmo um pouco de tudo isso: uma investigação nonsense; zona de contaminação experimental entre poesia e física de partículas; matéria expressiva, matéria acesa, em processo permanente de recombinação; um coro de pássaros (por que não?) zombando em alto e bom som de um rei que não existe.
Curadoria e texto crítico: Daniel Arelli | Poeta, crítico e professor de filosofia da UFMG
QUARKS: Individual de Giulia Puntel
Rua Sinval de Sá 586, Cidade Jardim, Belo Horizonte - MG.
Entrada Gratuita.
A mostra fica em cartaz até 6 de dezembro de 2025.
Visitação somente com horário agendado.
QUARKS
Cosmos. Lixo mastigado por uma estrela-anã. Cama, travesseiro e edredom para insetos. Caixa de ferramentas. Casa de máquinas orgânicas. Imagens de satélite pixeladas. Mesas: de operação, de vivissecção, de controle, de jogos. Instrumentos musicais? Bandeira de um país mirim. Exoesqueletos de plástico e resina. Plaquinhas de alumínio, ligas de cobre e manganês. Ondas de rádio, provavelmente. Disjuntores, fusíveis, circuitos, alavancas: tudo estragado. Um sofisticado sistema tectônico (atenção: tectônico, não hidráulico). Pó de meteorito. Quadra poliesportiva para moléculas bêbadas. Gatos de Schrödinger! Chapas de raio-x de corpos sem órgãos. Fliperama, cartuchos, joysticks: olhando bem, tudo é joystick.
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Quarks, de Giulia Puntel, parece ser tudo isso – e, ao mesmo tempo, nada disso. De imediato, o que salta aos olhos nesses trabalhos é seu grande poder de resistir à classificação apressada, à estabilidade conceitual, à fixidez de sentido poético. Eles parecem se instalar num ponto altamente instável, mas igualmente produtivo, no qual desmoronaram as linhas de demarcação convencionais entre as linguagens artísticas, entre o estado de artefato e a situação de processo, entre a arte e o jogo. Essas fronteiras são renegociadas e recombinadas a cada trabalho, num exercício a um só tempo lúdico e experimental, aventuroso e delicado. O resultado são objetos singularíssimos, virtualmente indefiníveis, dotados de um notável poder de evocação imagética, cujo processo de feitura parece ainda tão vivo, tão aceso, que temos a impressão de que seria quase possível fazer o caminho de volta, retraçá-lo retrospectivamente a partir do objeto finalizado. E embora sejam muito bem-acabados e conduzidos por um pensamento composicional bastante sofisticado (entre o pictórico e o escultórico, o estático e o cinético, o objeto e a instalação), temos a sensação de que cada um desses trabalhos é apenas uma cristalização possível dentre tantas outras que cada um deles poderia ter se tornado. Neles, o potencial parece estar tão presente quanto o atual. Aliás, é provavelmente aí que reside parte de sua grande ludicidade: sem cerimônia, eles parecem nos convidar para entrar no jogo. Jogo jogado, jogo ainda aberto. Eles são o que são, mas também o que poderiam ter sido – e, quem sabe, o que ainda poderão se tornar.
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Um convite para entrar no jogo – um jogo cujas regras, no entanto, não conhecemos de antemão, e que provavelmente são tão indefinidas quanto o próprio jogo. E, apesar de sustentar tanta indefinição, nada em Quarks incita receio, frieza ou distanciamento no observador. Ao contrário, é marcante como esses objetos provocam uma simpatia quase irresistível em nós. Seus materiais simples, sua voluntária precariedade, seu tamanho reduzido, sua elevada carga de humor e ludicidade – tudo isso, em suma, parece convergir para que Quarks se revista de grande potencial expressivo, de uma notável potência afetiva. Numa palavra: esses objetos são eloquentes, eles falam com a gente. Para mim, são fonte de intensa ternura. Ao que parece, a matéria aqui não apenas se acende – ela também se aquece.
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Mas talvez seu grande potencial afetivo não seja mais do que a expressão inevitável do intenso amor pelos materiais de que esses trabalhos prestam testemunho. Mais ainda: amor pela matéria, já que virtualmente qualquer resto, resíduo ou refugo de matéria parece poder se transformar em material artístico para Quarks. De certa maneira, trata-se aí de uma forma de amor análoga ao amor do colecionador pelos itens, não raro inúteis e idiossincráticos, que ele preserva e salva em seu acervo. (O colecionador estabelece “uma relação com as coisas que não põe em destaque seu valor funcional ou utilitário, a sua serventia, mas que as estuda e as ama como o palco, o cenário de seu destino” – Walter Benjamin).
§
Embora tão singulares, os trabalhos de Quarks não estão sozinhos. Não são poucos os pontos de contato que podemos traçar entre eles e certas experiências decisivas da arte contemporânea. A seu modo, esses objetos parecem orbitar a lógica daquilo que Leo Steinberg chamou de plano flatbed, localizável em um espectro considerável de produções contemporâneas: uma superfície de criação horizontal, aberta à múltipla contaminação do mundo, que corresponde aos processos operacionais do corpo humano e se destina mais à criação de imagens explicitamente artificiais e ruídos ópticos sobrepostos do que à feitura de imagens supostamente naturais, autossuficientes, íntegras. É este o território de Quarks: mais ação do que contemplação, mais ruído do que pureza, mais artifício do que natureza.
§
Quarks também parece querer reatar o fio que remonta aos trabalhos de artistas conhecidos como pós-minimalistas, como Eva Hesse, Richard Tuttle e Phyllida Barlow. Em geral, a poética desses artistas conserva a atenção à materialidade e à relacionalidade entre obra, espaço e observador dos seus antecessores minimalistas. No entanto, eles promovem uma forte guinada em direção à subjetividade e organicidade estéticas, assim como à fragilidade e precariedade dos materiais, o que contrasta frontalmente com o rigorismo geométrico, impessoal, objetivista e industrialista dos minimalistas. (Guardadas as tantas diferenças, trata-se de uma inflexão análoga àquela promovida, entre nós, pelos artistas neoconcretos em relação à arte concreta de um Grupo Ruptura, por exemplo). Penso que Quarks promove uma interessante apropriação e torsão bem-humorada da estética pós-minimalista no nosso contexto artístico-cultural, no qual a fragilidade e a precariedade material inevitavelmente adquirem contornos crítico-políticos.
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Originalmente, quark é uma palavra da língua inglesa arcaica que designa o grasnar dos corvos e de pássaros aparentados. Há também uma versão alemã do vocábulo, que designa um tipo de queijo coalhado ou, mais coloquialmente, algo como “absurdo ordinário” ou “trivial”. Em seu Finnegans Wake, romance monumental finalizado em 1939, James Joyce recupera o termo em toda a sua polivalência numa série de versos com delicioso sabor nonsense, num coro de pássaros que zombam do Rei Marcos da Cornualha, marido de Isolda, que, segundo o mito, se apaixona por Tristão. Eis os três primeiros versos: “Three quarks for Muster Mark! / Sure he hasn’t got much of a bark / And sure any he has it’s all beside the mark”. Em tradução livre: “Três quarks para o Seu Marcos! / Olha, seu latido é tão parco, / e quando late é um grande fiasco!” Em 1964, o físico Murray Gell-Mann emprega o termo em inspiração joyceana para batizar o que seria um dos constituintes fundamentais da matéria. Segundo sua hipótese, os quarks se combinam (com frequência em grupos de três) para formar um gênero de partículas compostas ao qual pertencem os prótons e os nêutrons, os principais componentes do núcleo atômico, até então tido como indivisível. Eis aí a longa e indomável história de uma palavra, da qual esses objetos formam agora o mais recente desdobramento.
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Os Quarks de Giulia Puntel talvez sejam mesmo um pouco de tudo isso: uma investigação nonsense; zona de contaminação experimental entre poesia e física de partículas; matéria expressiva, matéria acesa, em processo permanente de recombinação; um coro de pássaros (por que não?) zombando em alto e bom som de um rei que não existe.
Curadoria e texto crítico: Daniel Arelli | Poeta, crítico e professor de filosofia da UFMG
QUARKS: Individual de Giulia Puntel
Rua Sinval de Sá 586, Cidade Jardim, Belo Horizonte - MG.
Entrada Gratuita.
A mostra fica em cartaz até 6 de dezembro de 2025.
Visitação somente com horário agendado.
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